Um tipo de imortalidade
- Tiago Marinho

- 15 de set.
- 3 min de leitura


A palavra escrita é uma das maiores invenções da humanidade. Através dela, somos capazes de registrar eventos e conhecimentos, transmitindo o que sabemos através das barreiras do tempo e do espaço.
Trata-se da principal forma de lutarmos contra o esquecimento, e a maior prova disso talvez seja o fato de que civilizações inteiras desapareceram ao longo de nossa história, mas seus registros permaneceram conosco, servindo como um testemunho de sua existência e de suas conquistas.
Nossa batalha contra o esquecimento tem um profundo vínculo com um dos sentimentos mais universais da condição humana: o medo da morte.

Saber que nossa existência é finita nos impulsiona a deixar marcas, a construir legados, a ser lembrados. A escrita surge, então, como uma resposta simbólica à angústia da impermanência, pois, ao registrar nossas histórias, pensamentos e nomes, tentamos superar as depredações do tempo e os limites da mortalidade.
Essa ideia tem uma profunda ligação com a série de livros “As Crônicas da Companhia Negra”, de Glen Cook, considerada a primeira do subgênero de fantasia sombria. Nela, acompanhamos um grupo mercenário denominado Companhia Negra, narrado do ponto de vista de seus cronistas – soldados que registram seus feitos e os de seus membros em seus anais.
Existindo em um mundo sombrio e brutal, onde a morte é uma ameaça constante e a magia uma força perigosa, os membros da Companhia acreditam que terem seus nomes escritos nas crônicas é uma forma de imortalidade alcançada não pela grandiosidade de seus feitos, mas pelo simples fato de serem lembrados pelas próximas gerações.
Chagas, o cronista cujo ponto de vista acompanhamos no início da saga, chega a dizer que ninguém nunca sai da Companhia Negra, dada a importância desse registro.
Sob esse ponto de vista, a escrita adquire uma simbologia quase religiosa entre os mercenários, servindo inclusive de principal motivação para a entrada e permanência de diversos deles ao longo dos séculos. Torna o papel do cronista um dos mais importantes em suas fileiras: figura sacerdotal responsável pela escrita e leitura das crônicas de forma ritual, fazendo com que todos se lembrem de eventos passados e dos que já se foram.
Mesmo os membros menos relevantes ganham importância ao terem seus nomes escritos, e a citação “se não está nas crônicas, não aconteceu” mostra bem o que todos pensam a respeito daquelas páginas.
A Companhia Negra serve a quem lhe pagar mais, e no início da saga está a serviço da Dama, poderosa feiticeira que despertou de um sono de eras para reconquistar tudo o que dominara no passado – praticamente o mundo inteiro – subjugando-o pela força e pelo medo.
Os mercenários se veem envolvidos não apenas nessa guerra de reconquista, como também nos conflitos internos dos servos mais poderosos da Dama, os Tomados, perigosos feiticeiros mortos-vivos com poder físico e mágico descomunal, e precisam encontrar formas de sobreviver a situações perigosas e jogos de poder para continuarem seu serviço – e carregarem seus anais.
Com uma moralidade bastante ambígua, aceitam o papel de cães de aluguel, reconhecendo que sua maior recompensa será a imortalidade nos registros da Companhia, cuja existência é sempre a primeira de suas preocupações durante as situações mais complicadas. É importante proteger não apenas a própria imortalidade, como também a de seus companheiros tombados, para que no futuro, outros façam o mesmo por eles. Os paralelos religiosos são bem óbvios.
Os anais da Companhia nos lembram que a escrita não é um simples ato de registro, mas de criação de significado. Ao escrever, damos forma física à memória e, com isso, oferecemos uma chance de eternizá-la.
Em um mundo onde as coisas são cada vez mais efêmeras e passageiras, buscamos ser lembrados, deixar nossas marcas e contar nossas histórias, e o que nos permite alcançar isso são as palavras, que transformam o passageiro em permanente, o invisível em visível, o esquecido em lembrado.
Assim, não é uma importância descomunal, uma ocorrência sobrenatural ou um ato religioso que nos permitirá continuar aqui após nossa partida, mas o simples fato de termos sido registrados de alguma forma. E enquanto houver alguém para ler, haverá alguém para lembrar. A imortalidade, afinal, pode estar nas páginas de um livro.




Essa série é muito boa! Lembro-me bem dos idos da faculdade, quando organizávamos eventos de design que sempre falávamos um bordão: "se não foi registrado, não existiu". Normalmente, nos referíamos à fotografia, mas acredito que o texto segue no mesmo sentido. Independentemente disso, é muito bom ver essa reflexão partindo de um livro de que gosto muito! Excelente texto!
Não conhecia a obra e já fiquei muito interessado! Ótima forma de pensar a veracidade das palavras