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O medo e a alteridade em Lovecraft

Caio Capella











Nosso caro cavalheiro de Providence, sem dúvidas, gerou inegáveis marcas no horror e no ideário ocidental com a sua noção de Horror Cósmico, e não por acaso, a abertura de seu ensaio Supernatural Horror in Literature (1927) é um dos mais celebrados e citados, ao menos a primeira frase em tradução livre: “A mais antiga e forte emoção da humanidade é o medo, e o mais antigo e forte tipo de medo e o medo do desconhecido”, que recheia livros e filmes de horror. 


The Mist (2007, baseado em Stephen King) é um filme que relaciona-se ao medo do desconhecido e ao Horror Cósmico, semelhante às criaturas invisíveis e insondáveis de Lovecraft.
Cena do filme The Mist (2007), baseado no livro de mesmo nome de Stephen King. Na obra, o medo do desconhecido se relaciona ao Horror Cósmico, semelhante às criaturas invisíveis de Lovecraft.

Mas, bem a verdade, muitos deles sequer falam de Horror Cósmico.

Partindo desta premissa – o medo do desconhecido – Lovecraft construiu toda a cosmogonia dos Mythos, com conhecimentos insondáveis, cujos os próprios sussurros são capazes de enlouquecer a mente humana e descrições de seres com formas impossíveis. Mas curiosamente as bases desse medo partem da própria vivência do autor, sobretudo no que tange ao contato com o Outro e a alteridade.


S.T. Joshi, no prefácio da obra H.P. Lovecraft: The Complete Fiction (2011), aponta o desconforto crescente do cavalheiro de Providence em sua mudança para New York ao longo do casamento com Sonia H. Greene. Cidade cuja a imensidão, modernidade e a presença massiva de estrangeiros cobraram seu pedágio na sanidade do escritor, que posteriormente decide retornar à sua cidade natal e encerrar seu casamento.

Ora, precisamos falar sobre o elef… digo, Shoggoth branco na sala.


A verdade é que Lovecraft não é conhecido apenas por sua inovação no horror, mas também pelo seu pensamento racista. Em suas cartas trocadas com o famoso escritor Robert E. Howard – criador de Conan, dentre outros – é possível verificar dois pontos extremos acerca da visão sobre o “selvagem”, de um lado Lovecraft observa a degeneração e selvageria, por outro lado Howard observa a figura do selvagem como pura e livre das amarras da sociedade, quase um übermensch no sentido nietzschiano.


Este debate está fundado no racismo científico, presente nas rodas intelectuais no século XIX e começo do século XX, no qual a antropologia teve importante papel ao desmistificar o mito da perspectiva evolucionista de sociedade, na qual acreditava-se que era possível montar uma linha temporal da sociedade “mais primitiva” para a “mais evoluída”. Para tanto, os conceitos de cultura e alteridade são fundamentais, o primeiro nos mostra como a cultura funciona como óculos que nos permitem observar e operar no mundo, o segundo aponta para o reconhecimento da diferença a partir da reflexão sobre nós que o outro gera. Assim, em um processo de alteridade o outro atua enquanto espelho, nos fazendo refletir e pensar sobre nossa cultura e o nosso Eu.


E qual é o maior medo, segundo Lovecraft? 


From Beyond (1986)
From Beyond (1986) é um filme de horror corporal e de ficção científica dirigido por Stuart Gordon, baseado no conto homônimo de H. P. Lovecraft

O medo do desconhecido, em uma escala macro entidades cósmicas cujos objetivos são inescrutáveis e incompreensíveis para os seres humanos. Em uma escala micro, podemos apontar para o medo e preconceito contra os estrangeiros, pois estes fogem aos registros simbólicos presentes em nossa cultura.


No plano micro, podemos observar na obra de Lovecraft que o medo surge desta alteridade, isto é, o medo do desconhecido.

No conto The Shadow over Innsmouth (1931), a degeneração é um dos pontos centrais, representada pela mistura da raça humana e dos Deep Ones, surge uma alteridade radical para o narrador, que ao fim do conto descobre-se pertencente àquela linhagem abjeta e com o inexorável destino da degeneração em um abissal.


George Simmel (1858 - 1918) nos apresenta um conceito fundamental, o de estrangeiro/estranho, aquele que pode estar geograficamente próximo, mas socialmente se mantém distante, uma figura limiar – próxima, mas não totalmente integrada, o que causa incômodo. Nos contos de Lovecraft, figuras que poderiam ser categorizadas como estranhas sempre geram desconforto e medo pois atuam como imagens distorcidas que nos levam a questionar nossas convicções. 


Em The Shadow Over Innsmouth o que nos causa temor e incômodo são os híbridos. Esta mistura de traços humanos e dos seres abissais, faces humanas distorcidas, barbatanas, peles escamosas e úmidas, com tons acinzentados e por fim guelras que nos geram incômodo. Quase um body horror, ao observar corpos humanos degenerados e com proporções estranhas olhamos para nós mesmos. E se meu corpo começar a decair?


Ao projetar seus temores quanto ao desconhecido/estranho, Lovecraft representa este estranhamento nos eixos macro (entidades cósmicas) e micro (o Outro). No plano particular, figuras próximas, familiares em aparência, mas estranhas em essência, atuam como espelho negro que – em um processo de alteridade –  refletem nossos temores e fraquezas. Este reflexo distorcido é o horror que sonda em águas profundas, as quais não ousamos olhar diretamente sob o risco de nos perder na sombra que espreita em nossas mentes.



1 comentário


Volnei Freitas
Volnei Freitas
há 24 minutos

Dr. Capella, brilhante ensaio inicial!

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