O medo e a alteridade em Lovecraft
- Caio Capella
- há 7 horas
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Nosso caro cavalheiro de Providence, sem dúvidas, gerou inegáveis marcas no horror e no ideário ocidental com a sua noção de Horror Cósmico, e não por acaso, a abertura de seu ensaio Supernatural Horror in Literature (1927) é um dos mais celebrados e citados, ao menos a primeira frase em tradução livre: “A mais antiga e forte emoção da humanidade é o medo, e o mais antigo e forte tipo de medo e o medo do desconhecido”, que recheia livros e filmes de horror.

Mas, bem a verdade, muitos deles sequer falam de Horror Cósmico.
Partindo desta premissa – o medo do desconhecido – Lovecraft construiu toda a cosmogonia dos Mythos, com conhecimentos insondáveis, cujos os próprios sussurros são capazes de enlouquecer a mente humana e descrições de seres com formas impossíveis. Mas curiosamente as bases desse medo partem da própria vivência do autor, sobretudo no que tange ao contato com o Outro e a alteridade.
S.T. Joshi, no prefácio da obra H.P. Lovecraft: The Complete Fiction (2011), aponta o desconforto crescente do cavalheiro de Providence em sua mudança para New York ao longo do casamento com Sonia H. Greene. Cidade cuja a imensidão, modernidade e a presença massiva de estrangeiros cobraram seu pedágio na sanidade do escritor, que posteriormente decide retornar à sua cidade natal e encerrar seu casamento.
Ora, precisamos falar sobre o elef… digo, Shoggoth branco na sala.
A verdade é que Lovecraft não é conhecido apenas por sua inovação no horror, mas também pelo seu pensamento racista. Em suas cartas trocadas com o famoso escritor Robert E. Howard – criador de Conan, dentre outros – é possível verificar dois pontos extremos acerca da visão sobre o “selvagem”, de um lado Lovecraft observa a degeneração e selvageria, por outro lado Howard observa a figura do selvagem como pura e livre das amarras da sociedade, quase um übermensch no sentido nietzschiano.
Este debate está fundado no racismo científico, presente nas rodas intelectuais no século XIX e começo do século XX, no qual a antropologia teve importante papel ao desmistificar o mito da perspectiva evolucionista de sociedade, na qual acreditava-se que era possível montar uma linha temporal da sociedade “mais primitiva” para a “mais evoluída”. Para tanto, os conceitos de cultura e alteridade são fundamentais, o primeiro nos mostra como a cultura funciona como óculos que nos permitem observar e operar no mundo, o segundo aponta para o reconhecimento da diferença a partir da reflexão sobre nós que o outro gera. Assim, em um processo de alteridade o outro atua enquanto espelho, nos fazendo refletir e pensar sobre nossa cultura e o nosso Eu.
E qual é o maior medo, segundo Lovecraft?

O medo do desconhecido, em uma escala macro entidades cósmicas cujos objetivos são inescrutáveis e incompreensíveis para os seres humanos. Em uma escala micro, podemos apontar para o medo e preconceito contra os estrangeiros, pois estes fogem aos registros simbólicos presentes em nossa cultura.
No plano micro, podemos observar na obra de Lovecraft que o medo surge desta alteridade, isto é, o medo do desconhecido.
No conto The Shadow over Innsmouth (1931), a degeneração é um dos pontos centrais, representada pela mistura da raça humana e dos Deep Ones, surge uma alteridade radical para o narrador, que ao fim do conto descobre-se pertencente àquela linhagem abjeta e com o inexorável destino da degeneração em um abissal.
George Simmel (1858 - 1918) nos apresenta um conceito fundamental, o de estrangeiro/estranho, aquele que pode estar geograficamente próximo, mas socialmente se mantém distante, uma figura limiar – próxima, mas não totalmente integrada, o que causa incômodo. Nos contos de Lovecraft, figuras que poderiam ser categorizadas como estranhas sempre geram desconforto e medo pois atuam como imagens distorcidas que nos levam a questionar nossas convicções.
Em The Shadow Over Innsmouth o que nos causa temor e incômodo são os híbridos. Esta mistura de traços humanos e dos seres abissais, faces humanas distorcidas, barbatanas, peles escamosas e úmidas, com tons acinzentados e por fim guelras que nos geram incômodo. Quase um body horror, ao observar corpos humanos degenerados e com proporções estranhas olhamos para nós mesmos. E se meu corpo começar a decair?
Ao projetar seus temores quanto ao desconhecido/estranho, Lovecraft representa este estranhamento nos eixos macro (entidades cósmicas) e micro (o Outro). No plano particular, figuras próximas, familiares em aparência, mas estranhas em essência, atuam como espelho negro que – em um processo de alteridade – refletem nossos temores e fraquezas. Este reflexo distorcido é o horror que sonda em águas profundas, as quais não ousamos olhar diretamente sob o risco de nos perder na sombra que espreita em nossas mentes.
Dr. Capella, brilhante ensaio inicial!