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O retorno à selvageria da Corsa-Mulher

Luis F. Buzzato














A Corsa de Cerineia
A Corsa de Cerineia

Em 1979, Marina Colassanti, uma das autoras mais promissoras no gênero maravilhoso, publica um livro de contos de fada chamado Uma Ideia Toda Azul, que contém uma série de narrativas protagonizadas por mulheres mais-que-humanas. Em especial, aqui vamos trabalhar com o conto “Entre As Folhas do Verde O.”. Nesse conto, encontramos um príncipe que em uma de suas caças encontra uma figura peculiar na floresta: a Corça-Mulher. Ele queria matar a Corça, mas a Mulher, amar.  


A partir disso, a narrativa pode ser lida a partir do conceito trazido por Sylvia Alaimo de transcorporação – ou seja, o movimento de se transformar em outra natureza fora do antropoceno, do homem no centro de tudo para figuras não-humanas como insetos, animais, a lua e etecétera.


Alaimo procura nessa concepção desfazer as oposições construídas pelos humanos: o bem-mal, homem-mulher, sim-não, correto-errado. Parte da premissa que entre as dualidades existe alguma coisa, um meio do caminho ou um outro lado.

Embora o conto de Colassanti trabalhe com figuras míticas e extranaturais, o conceito de transcorporação ainda pode ser uma chave de leitura.


Na caçada da corça-mulher, o príncipe é bem-sucedido. Leva-a para o castelo, onde ali tenta entender por sua linguagem as vontades dela, porque não consegue entender o que a narrativa chama de língua da floresta. Em ato precipitado, o príncipe pede ao feiticeiro que a transforme completamente em mulher.


Assim é feito: era totalmente mulher, mal sabia andar, nem falar a língua dos homens; mas assim que aprende a caminhar, vai a floresta e pede para que a Rainha a transforme em uma corça – completamente corça.



Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio. Então ficavam horas se olhando calados, com tanta coisa para dizer.


Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e joias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher.


Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho. Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.


(Entre As Folhas do Verde O., Uma Ideia Toda Azul, Marina Colassanti, 1979)



Esse movimento da personagem de transcorporar pode mover muitos sentidos da sociedade contemporânea. Em um mundo ocupado pela produção exacerbada, genocídios, destruição do meio-ambiente e retrocesso aos direitos humanos, o movimento de transcorporar ao mundo natural é cada vez mais necessário: entender que a vida natural pode ser composta de limites saudáveis entre o ambiente e a vida humana, e entre as diferenças existentes em cada um.


Em um país que mata quatro mulheres por dia, a Corça-Mulher movimenta uma possibilidade de vida: o retorno à selvageria. Não a selvageria da barbaridade ou da desumanização, mas aquela que é comprometida com a integridade inata do corpo e liberdade para viver em seus próprios termos.


O retorno ao natural, ao que é ancestral, aparece dentro do texto para além de uma fuga de liberdade, é uma reconexão com a existência do que sempre esteve lá.

Para evitar o fim do mundo ou tentar lidar com ele, o retorno à selvageria e o movimento de transcorporação também é um convite amplo. Pensar para além do homem no centro de tudo. É pensar na floresta, na integridade do corpo e da mente, na vida correndo sem parar.


É desafiar a lógica de produção e entender o movimento das raízes das árvores: conectar com aquilo que é profundo e tem seu próprio tempo. Colassanti faz um convite do retorno ao selvagem, ao que foge do ego e das construções artificiais; é um chamado para repensar o mundo por outras lentes, por outras existências, para então queimar o mapa e reescrever a própria vida.


Referências

Edilane Ferreira, d. S. (2020). Mulheres, natureza mais-que-humana e movimentos transcorpóreos em contos de fadas de Marina Colasanti. Revista Ártemis, 29(1), 14-29. doi:https://doi.org/10.22478/ufpb.1807-8214.2020v29n1.52908

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