Quando se pensa no vampiro, a figura da noite que vem para assombrar pesadelos e deleitar-se no sangue de suas vítimas, pensa-se primeiro, nos dias de hoje, uma figura poderosa, mas já não tão ameaçadora. Muitas vezes até bondosa. Claro, interpretações modernas como na saga Crepúsculo (2008 - 2012) ou nas animações de Hotel Transilvânia (2012 - 2022) retiraram o arquétipo de seu habitat natural, no terror, para que pudessem recriá-lo num novo tempo, para novas audiências.
Esse novo pensamento, contudo, parece não agradar o cineasta Robert Eggers (A Bruxa, 2015; O Farol, 2019), um dos expoentes do terror americano contemporâneo que tomou para si a missão de refazer o mito do vampiro, adaptando como fora feito pela primeira vez no cinema em 1922, por F. W. Murnau. Eggers, no entanto, não é o foco desse texto, apenas um pretexto para sua criação. Falaremos aqui de uma outra interpretação dessa história, por um cineasta paradigmático do cinema alemão cujo filme dialoga ainda mais com este tempo.
Werner Herzog (1942) é, embora não se considere, um dos grandes expoentes do Novo Cinema Alemão, uma vanguarda que teve início nos 1960 e foi responsável por reavivar a estrutura de produção, pensamento e consumo de cinema no mercado de uma Alemanha ainda abalada pelo nazismo. Para além de Nosferatu, Herzog foi diretor de obras como Fitzcarraldo (1982), Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972) e O Homem-Urso (2005); filmes que trabalham sobre a dicotomia gerada entre homem e natureza, o embate que os homens buscam contra uma força maior e que, por consequência, lhes trará sua derrocada.

Acredito que, com isso estabelecido, torna-se mais fácil a compreensão do que faz de Nosferatu, O Vampiro da Noite (1979), um filme tão particular, ainda que tratando-se de uma mesma história. Para os que viram os filmes de Eggers, o longa segue a mesma linha narrativa. Para os que estiveram adormecidos em seus caixões ao longo deste mês, o longa narra a história de Lucy Harker (Isabelle Adjani), uma mulher abastada cujo marido, Jonathan (Bruno Ganz) se vê incumbido de viajar à Transilvânia para concluir a venda de um imóvel ao Conde Drácula (Klaus Kinski), um fera vampírica que fará de tudo a fim de ter Lucy em sua posse. Se as narrativas assemelham-se, a forma não poderia ser mais distinta.
Se, em 2024, busca-se construir em Nosferatu um mito, como se estivéssemos diante de uma daquelas histórias contadas no século XV, e para tanto traz no vampiro uma figura de poder e ameaça, que destrói vidas e suga o sangue com animalesca selvageria, em 1979 buscava-se outra abordagem.
Para Herzog, é o embate da natureza humana frente à natureza solitária do mal.
Nosferatu é mau, mas não por imposição cruel da força. Na verdade, Nosferatu de Kinski é uma figura fragilizada na imagem. Desde sua primeira aparição, sem nenhum triunfo, no portão do castelo, até o momento em que primeiro agoniza em desejo e se aproxima sorrateiramente para beber do sangue de Jonathan (na mão, não no pescoço), e principalmente quando tenta tomar Lucy no banheiro e é escorraçado quando tenta ser cruel. Vemos nele uma figura covarde, quase impotente, que se põe ameaçador puramente por ser imortal e infinitamente entediado. Ele buscava uma forma de findar seu tédio através da morte, quando recobra em Lucy uma potência no desejo.
Ainda nesse sentido, o filme estabelece imageticamente esse confronto também a partir da relação entre homem e natureza em tela. O filme abre com uma imageria do horror, trazendo corpos decrépitos de crianças e mulheres, e em seguida, o voo de um morcego enquanto prenúncio. Logo tem-se uma quebra brusca em direção a um ambiente de conforto e segurança, com uma retratação idílica da vida de Jonathan e Lucy. Quando Jonathan viaja para o encontro de Drácula, o diretor valoriza os ambientes rurais e as paisagens da Alemanha para mergulhar o protagonista nessa sensação de desconhecido, diminuindo seu tamanho no plano, à medida que também cai a luz e mergulha aqueles mesmos ambientes numa escuridão maligna, demarcando a chegada do vampiro.
A personagem de Isabelle Adjani também cresce muito nessa interpretação. Ao partir de uma socialite alemã movida por suas crenças e fé que é caçada por um mal oculto e precisa escorar-se em si mesma para confrontar uma vez que a ideia da razão (representada na autoridade de homens nobres) é derrotada pela natureza irrefreável de Nosferatu. Quando a praga se espalha através dos ratos, a nobreza já contaminada realiza uma última ceia, no intuito de morrer em luxo, apenas para, no plano seguinte, seus cadáveres se tornarem plateia enquanto os ratos devoram o banquete. A morte de Drácula dá-se com prazer: após desposar de Lucy, ele é engolfado pela luz do sol da manhã e verte ao chão agonizando como um animal. Uma fera demasiadamente humana.
Acredito pessoalmente que o maior êxito de Herzog está na sua visão do Nosferatu (ou Orlok, ou Drácula) enquanto essa figura de um sofredor exemplar. A capacidade do diretor de lidar com uma questão tão essencialista como a natureza humana e sem cair em conceitos deterministas (como exausto tropo do ser humano intrinsecamente perverso) é o que distingue sua interpretação de uma obra tão recriada.
Acredito também, para finalizar, que a amoralidade da imagem do diretor serve para torná-lo relevante ainda mais nos dias de hoje ao construir o horror partindo das relações e emoções humanas apequenando-se frente à uma natureza que indistingue bem e mal, em contradição à iteração de Eggers, que constrói o maligno conde enquanto uma encarnação do próprio mal, tornando o Nosferatu de 1979, um vampiro até mais adequado a novos tempos.
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